Auto-representação




Exteriorizações, Auto-representação, 2009

Somos, para os outros, aquilo que a cultura espera de nós. Para ela, e através dela, representamos. Uma aparência daquilo que não nos define, mas que nos exterioriza, como um reflexo de nós na cultura que somos.

Auto-retrato





Memórias, Auto-retrato, 2008

O que é um Auto-retrato? Ou mais precisamente, uma fotografia Auto-retrato?
Uma imagem onde tentamos delimitar aquilo que somos. Aquilo que vemos de nós ao olharmos tanto de fora para dentro, como de dentro para fora, pois o nosso ser só pode ambicionar aproximar-se de uma definição quando não for esquecida a interligação no mundo que lhe dá vida, como o vemos e sentimos pelos nossos sentidos.

Para mim um Auto-retrato é composto pelo conjunto de memórias que me compõem e modelam também a mim. Não é composto pelas coisas que foram, nem pelas que são, mas pela forma como elas se acomodam na minha memória e em mim se transformam, e a mim me transformam e me tornam num composto de experiências, assimilações, emoções.

Um Auto-retrato para mim é, a cima de tudo, uma composição, onde várias ideias, e várias expressões, interagem em vários níveis de profundidade e a vários níveis de transparência.

Para materializar este retrato de mim numa imagem visível por outros, as várias imagens que flutuam no limiar do meu consciente materializam-se e sobrepõem-se numa só que se tenta aproximar de uma expressão da confusão que é o meu ser. É para mim o meu Auto-retrato, não pelo que está real e fisicamente presente na imagem mas pela forma como eu interpreto o que lá está, e o sinto.

É aquilo que eu vejo, o que eu penso, que se sobrepõe em várias experiências simultâneas, em várias presenças, e numa história, que, juntos, talvez me possam definir.

Cada imagem, que da expressão materializada de mim faz parte, representa um pequenino aspecto daquilo que experimentei. Em separado não são nada se não recordações soltas e, por consequência, vazias de qualquer ser, juntas, cada uma fornece uma parte de si para uma expressão daquilo que poderei ser eu. Um conjunto que não se limita a sobrepor-se e no lugar permanecer alheio da sua material comunhão mas que interage, realças partes de um outro pedaço, esconde outras. Transparências que formam um todo. Memórias que me compõem.

Retrato


Memória descritiva:

Procurei desenvolver neste trabalho uma abordagem aos princípios básicos da comunicação contidos na acção e intenções retratistas.
O corpo de imagens que criei pretendem ilustrar, de uma forma sequencial, os vários ícones da linguagem que, embora intrinsecamente relacionadas, desenvolvem-se em quatro tipologias, evoluindo numa escala de complexidade e intensidade comunicativa.
Esta escala não pretende acompanhar uma linha do pensamento criador, mas, unicamente, da intensidade e correlação dos elementos constitutivos da mensagem.
Pretendo com esta análise encontrar os princípios comunicativos inerentes à condição do retrato, partindo da absoluta decomposição da mensagem retratista à sua condição mais factual para lhe reatribuir, gradualmente, a complexidade dos seus signos.
Como primórdio inerente à tradição do retrato, parto da ideia de que o retrato é uma intenção de comunicar alguém.























 

Impressão Facial


FISIONOMIA, s.f. As feições particulares e expressão do rosto
de uma pessoa; aparência; conjunto de caracteres(...)
In A Enciclopédia, Editorial Verbo.


Um retrato é um registo do conjunto de feições peculiares do rosto de uma pessoa, traços que a definem, distinguindo-a de todas as outras.
Não é, nem pode ser nunca, um registo absoluto daquilo que é, em toda a sua complexidade, mesmo que nos detenhamos apenas no momento, a essência dessa pessoa.
Convém, antes de mais, definir-se o que é aqui entendido por essência de alguém. A essência é o que, para além da sua existência física num determinado momento, constituí uma pessoa pelo conjunto total das suas faculdades físicas e intelectuais, tecidas na sua experiência, manifestando-se na sua atitude e expressão em interacção com as coisas.
Partindo desta definição, a fotografia de retrato, como registo pictórico da realidade física de um sujeito num determinado instante, pode registar a essência do sujeito apenas na proporção em que esta é manifestada e, desse modo, comunicada, através das suas feições.
As feições são, neste contexto, o veículo de comunicação da essência do sujeito. Nelas se manifesta, de uma forma mais ou menos apreensível [1], a sua história, experiência, personalidade e estado de espírito.

FISIONOMIA, s.f. (...) do gr. Physiognomía,
«arte de conhecer o carácter pelo rosto»
In Dicionário, O Português Essencial,Porto Editora.


Retrato Narrativa

A photographic portrait is a picture of someone who knows he's being
photographed, and what he does with this knowledge is as much a part of
the photograph as what he's wearing or how he looks. He's implicated
in what's happening, and he has a certain real power over the result.
Richard Avedon [2]


No entanto, a comunicabilidade da essência de um sujeito através das suas feições, congeladas num imediato e descontextualizadas do conjunto total de envolvências que dele fazem parte fundamental, carrega forte subjectividade que atribui ao leitor um papel fundamental na descodificação da mensagem.
Esta falta de controlo sobre aquilo que é comunicado não vai, muitas vezes, ao encontro das intenções do sujeito retratado que, mais numa atitude de auto-representação, pretende narrar aquilo que entende, ou aquilo que quer que o receptor entenda, de sí.
A procura de assumir controlo sobre o que é comunicado leva o retrato a apoderar-se de ícones que adicionam dados mais perto do concreto à caracterização do Eu. Elementos simbólicos são trazidos para a imagem que perde o carácter de instante para passar a narrar uma história, uma temporalidade congelada no aglomerado de ícones trazidos das diversas instâncias que constituem a realidade do sujeito, para tentar transmitir, no todo, já não só a sua essência mas as manifestações mais comuns da sua existência: o quotidiano, a carreira, o estatuto social. [3]


Retrato da Mente

The most difficult thing for me is a portrait. You have to try
and put your camera between the skin of a person and his shirt.
Henri Cartier-Bresson [4]


Paralelamente a esta procura de representação do ser como um todo social, que, levada ao extremo, se torna pouco portadora de uma realidade factual, o fotografo ambiciona atingir a essência do sujeito de forma mais pura, despojando-a de ícones do concreto e procurando enfatizar os sentidos.
Através do olhar, da luz, da iluminação, do ângulo, da cor ou da sua ausência e, mais do que tudo, da expressão, procura fazer sobressair a essência do sujeito em gritos comunicativos, transformando a bidimensionalidade da imagem numa comunicação de profundidade, aproximando-se da multidimensionalidade espiritual do sujeito.


Retrato Apropriação

Every man's work, whether it be literature or music or pictures
or architecture or anything else, is always a portrait of himself.
Samuel Butler [5]


A comunicação da essência ganha assim força nos elementos exteriores que, numa relação de repricocidade interactiva, lhe são intrinsecamente associados e o fotografo assume um importante papel na formulação da mensagem. É ele quem selecciona os elementos que dela serão integrantes e os combina a seu critério, tentando, pela sua visão sobre o sujeito, fazer realçar os mais significativos, símbolos da essência do sujeito, manipulando-os, exagerando-os.
Um retrato torna-se, então, não um mero registo da aparência visual de uma pessoa mas um meio de comunicação, portador daquilo que é comunicável pelo olhar do fotógrafo sobre essa pessoa.
A força destes processos de exaltação do Eu, gerados pelo olhar manipulador do fotógrafo, acaba por afastar o comunicado da realidade da pessoa para se aproximar mais de uma imagem que o fotógrafo cria sobre essa pessoa.
Neste ponto de vista, um retrato é sempre revelador de uma realidade, a realidade do olhar do fotografo, retratando por vezes mais da realidade do fotógrafo que do próprio retratado. A realidade do sujeito, da sua essência, será revelada apenas na medida em que a sua representação pictórica, materializada pelo fotógrafo, mais se aproxime, ou afaste, dessa realidade.
O fotógrafo materializa assim uma nova pessoa, uma pessoa que não existia antes de ser por ele criada. Apoderando-se da Impressão Facial de um sujeito atribui-lhe uma nova identidade, cruzamento dessa impressão com a sua visão, comunicável, sobre o sujeito, sobre o momento, e mesmo sobre o espaço, sobre a expressão e a temporalidade, numa relação recíproca onde cada interveniente no acto da fotografia empresta ao fotógrafo um pedaço de sí para construção deste novo ser.


«na verdade eu não tento dizer alguma coisa, tento fazer alguma coisa»
David Sylvester, 1975.
[6]



[1] Pressupõe-se, neste processo, uma maior acção por parte do receptor da mensagem, na sua capacidade para interpretar os signos comunicativos, que do emissor ou mesmo do meio.
[2] Richard Avedon, 1923–2004, fotógrafo profissional.
[3] Esta atitude narrativa, a comunicação do Eu através de objectos, encenações, pontos de vista e o mais variado leque de adereços passíveis de iconizar, objectivando, a comunicação, está presente em grande parte dos retratos de hoje em dia; nos retratos de amador, aqueles a que gostamos de chamar “Retratos de Família, ou até mesmo em retratos de carácter mais publicitário, onde a encenação construida nada tem a ver com o sujeito retratado mas com aquilo que se quer que acreditemos dele ou, ainda, nos retratos de figuras públicas, onde a iconização do prestígio, beleza, posses, etc, concedem mais de sí ao retrato que o próprio retratado e, é levada ao seu expoente máximo nos retratos da segunda metade do século XIX, herança e imitação dos retratos aristocratas encomendados aos artístas-pintores, remotando a tradições tão antigas quanto as primeiras representações pictóricas do Homem e o seu florescimento nas mais diversas culturas.
[4] Henri Cartier-Bresson, 1908-2004, importante fotógrafo do século XX, fundador da agência fotográfica Magnum juntamente com Bill Vandivert. Considerado por muitos como o pai do fotojornalismo.
[5] Samuel Butler, 1612-1680, Pensador e Dramaturgo, autor de “Hudibras” (1663).
[6] In MEDEIROS, Margarida, Fotografia e Narcisismo, O auto-retrato contemporâneo, Lisboa, Assírio & Alvim, (p36).


Bibliografia consultada:

BENJAMIN, Walter (1992), Sobre arte, técnica, linguagem e política, Lisboa, Relógio D’Água.
HOUSE, George Eastman (1999), 1000 Photo Icons, Köln, THACHEN GmbH.
MEDEIROS, Margarida (2000), Fotografia e Narcisismo, O auto-retrato contemporâneo, Lisboa,
Assírio & Alvim.